CONTRA A POBREZA, A FAVOR DOS POBRES
Marcus Eduardo de Oliveira (*)
“Quantos pobres são necessários para fabricar um rico?”.
César Vallejo, poeta peruano
Resumindo a situação de tristeza e descaso sofrida pelos índios nas Américas, o equatoriano Juan Montalvo (1832-1889) certa vez disse que “se a minha pena tivesse o dom das lágrimas, eu escreveria um livro intitulado O Índio e faria chorar o mundo”.
A exemplo do poeta Montalvo, todos nós que tivemos a oportunidade de escapar da pobreza e de não conhecermos a dor da fome, deveríamos escrever, cada um de nós, nossos livros e intitulá-los “A fome: a mais abjeta situação dos homens” e, dessa forma, também fazer chorar o mundo.
Afinal, todos os anos milhões de pessoas morrem na África, Ásia, Américas e também na Europa, simplesmente por nada terem o que comer. São simplesmente alarmantes e inadmissíveis os dados disponíveis dos organismos internacionais sobre a fome no mundo: a cada quatro segundos uma pessoa morre de fome – 75% delas são crianças menores de cinco anos de idade. São 15 mortes por minuto, quase 22 mil por dia, mais de 8 milhões por ano.
Não é segredo a ninguém de que a fome dos dias atuais não acontece em decorrência da falta de alimentos. Logo, “alguém”, de forma desumana e impiedosa, tem pisoteado no sofrimento dos mais necessitados, condenando milhões de seres humanos a mais abjeta situação: morrer de fome.
O certo é que ninguém escolhe ser pobre. Todos o são como vítimas de relações injustas, diz acertadamente o dominicano Frei Betto.
A pobreza de uns, não pode ser decorrente da soberba e ganância de outros. A riqueza não tem o direito de esfoliar a pobreza, assim como o mundo rico não pode abandonar os mais pobres à própria sorte. Se sobra para uns o que tanto falta aos outros, a repartição, nesse caso, deve ser ato obrigatório, pois além de ser moralmente desejável, tal ato vem revestido de dignidade e de forte sentimento humano, naquilo que todos clamamos: o respeito à vida.
As mais variadas doutrinas teológicas tem exaustivamente insistido, à sua maneira, na opção a favor dos pobres. A Teologia da Libertação (TL), cujo berço de propagação é a América Latina, exclama que “fora dos pobres não há salvação”. De igual modo, a doutrina (ou filosofia de vida) decodificada por Allan Kardec acentua que “a caridade produzirá a salvação”.
Todavia, talvez o maior exemplo desse engajamento doutrinário religioso em favor dos pobres esteja com Jesus, o Cristo. Quando inicia Seu ministério, deixa o Jordão e dirige-se à Galiléia. Dentre todas as vilas ao norte do lago Tiberíades, escolhe Cafarnaum – refúgio dos mais pobres dentre os pobres, como bem assinala Maria José de Queiróz na obra Em nome da pobreza.
A imperfeição da sociedade
A existência da fome e da miséria evidencia a imperfeição da sociedade, e mostra, antes de qualquer outra coisa, que o homem, por natureza, pensa e age de forma individual, e não coletiva, pois somente isso explica a abundância de um lado, enquanto, do outro, a escassez ceifa vidas. Santo Agostinho, a esse respeito, se manifestou: “O supérfluo dos ricos é o necessário dos pobres”.
Num mundo cujos modelos econômicos desvalorizam os seres humanos e enaltecem o valor do dinheiro, as relações sociais, a cada dia, se desvanecem por completo. Não é à toa que, nesse pormenor, o sujeito central do processo de crescimento, em várias partes do planeta, continua sendo o mercado, e o objetivo final, a mercadoria.
Isso remonta tempos antigos. Historicamente, sobre os alicerces da miséria e da fome o grande capital construiu (e vem solidificando, desde então) sua riqueza, assim como várias sociedades foram edificadas nos padrões do luxo, usando o sangrento suor dos escravos, tratados como meros seres descartáveis.
O mundo aboliu a escravidão “libertando” os negros do cativeiro, mas não aboliu o salário indigno pago aos trabalhadores do momento – os novos “escravos” do dias atuais. O salário mínimo pago, na média, nos primeiros anos do século XXI, é inferior ao custo médio para manter um escravo nos últimos anos da escravidão, no século XIX.
O homem moderno ainda não se deu conta de que o mais importante é a sociedade, e não o mercado. Enquanto não for mudada essa visão, trocando o mercado e a mercadoria pelo ser humano, as desigualdades continuarão a ser vistas como meras estatísticas nos boletins informativos dos acadêmicos e nos balanços sociais dos governos, e a exclusão social continuará a ser a maior chaga dos tempos hodiernos.
Apóstolos das transformações sociais
Para tentar mudar essa situação, a conscientização/ação (primeiro conhecer e depois agir) dos problemas sociais passa a ser tarefa obrigatória de todos. Nesse pormenor, o economista moderno, acostumado aos números da desigualdade social, precisa também de uma transformação conceitual interna entendendo que deve ser (e agir) como apóstolo das transformações sociais, e não como mero técnico e analista de números e estatísticas que não enchem a barriga de ninguém.
Contra a exclusão, a favor da inclusão. Contra a pobreza, a favor dos pobres, dos deserdados, dos excluídos, dos perseguidos, dos mutilados. Essa deve ser a conduta daqueles ao se engajarem na luta por um mundo melhor. Tanto os mais ricos quanto os mais pobres dos pobres tem os mesmos direitos, e esses precisam ser resguardados.
Essa luta, no entanto, é intensa. Afinal, contrariar interesses constituídos em favor dos poderosos não é tarefa fácil. Essa luta passa pela democratização do acesso à terra, contra o latifúndio; pela geração de emprego com justa remuneração, contra o subemprego e a pífia condição de trabalho. Pelo direito de se alimentar, contra a abundância dos alimentos mal distribuídos. Pela paz, em lugar da guerra. Pela vida, contra a morte.
Para isso, há uma tarefa descomunal pela frente na tentativa de mudar a sorte dessa multidão que morre de fome e que conhece, de perto, o drama da exclusão. O homem moderno não pode se curvar e se ausentar dessa missão. Essa tarefa deve ser seu objetivo de vida. O escritor cubano Alejo Carpentier diz, na parte final de O reino deste mundo, que devemos “descobrir as tarefas que ficam por terminar, que serão sucedidas no futuro por outras tarefas, de forma que sempre haverá tarefas”.
É verdade que não fomos consultados para vir ao mundo, mas exigimos que nos consultem para viver nele. E, de toda sorte, queremos viver num mundo mais justo e menos desigual. Acima de tudo, e contra os opressores, vale lembrar as palavras do poeta Rabindranath Tagore, em Meditações: “Desejamos que a próxima civilização não se baseie tão somente na competição e na exploração econômica e política, mas na cooperação social de todo o mundo, em idéias espirituais de reciprocidade, e não em idéias econômicas de eficiência”.
(*) Marcus Eduardo de Oliveira é economista e professor universitário.
Mestre pela USP em Integração da América Latina e Especialista em Política Internacional
Autor dos livros “Conversando sobre Economia” (ed. Alínea) e
“Pensando como um Economista” (eBookBrasil).
Contato: prof.marcuseduardo@bol.com.br
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